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segunda-feira, 12 de março de 2012

Mitos ? : Beber álcool corta o efeito de antibióticos



Quando Alexander Fleming, no início do século 20, observou que um fungo "assassino" havia contaminado todas as placas de Petri contendo suas culturas de bactérias, destruindo o trabalho de horas, dias e meses, ele não se desesperou. Como bom cientista, ele buscou ver o lado bom daquele problema e, antes de descartar as placas, observou que o fungo havia formado um halo ao seu redor, eliminando as bactérias naquele local. Foi um passo muito importante para a história da ciência: Fleming acabara de descobrir a penicilina. Entretanto, antibióticos não são substâncias novas no tratamento de doenças, pois há mais de 2500 anos os chineses já conheciam as propriedades terapêuticas da coalhada de soja mofada, aplicando-a em carbúnculos, furúnculos e infecções similares. Pasteur e Joubert, em 1877, foram formalmente os primeiros pesquisadores que reconheceram as potencialidades clínicas dos microorganismos como agentes terapêuticos.





Tão antigo quanto o uso de antibióticos é o consumo de bebidas alcoólicas. As mais antigas eram fermentadas, como cervejas e vinhos. Na Idade Média, quando os árabes introduziram técnicas de destilação na Europa, os alquimistas passaram a considerar o álcool como elixir da longa vida. Hoje em dia, o álcool causa muito mais prejuízos à saúde do que benefícios, quando ingerido sem moderação.





Mas qual a relação entre o consumo de álcool e o uso de antibióticos? É do conhecimento de todos que os médicos costumam aconselhar aos pacientes a não ingestão de bebidas alcoólicas junto com antibióticos. Entretanto, a justificativa dos médicos normalmente é que "o álcool tira o efeito do antibiótico" e tal afirmação merece um estudo um pouco mais atento, pois nem sempre o motivo é esse. E antes de falar dos outros motivos é preciso falar um pouco da absorção dos antibióticos pelo organismo, do mecanismo de ação e dos efeitos adversos dos mesmos, assim como é preciso observar a forma de absorção e os efeitos que o álcool causa por si só.





Os antibióticos são substâncias que atuam diretamente sobre o microorganismo, agindo sobre sua membrana celular, suas enzimas ou seu DNA. Cada uma das ações dos antibióticos está ligada à sua estrutura química. Além disso, as características químicas de cada substância modificam a sua absorção em nosso corpo e, de uma maneira geral, isso pode ser entendido da seguinte forma: substâncias com caráter levemente ácido ou alcalino e comportamento apolar (substâncias apolares podem ser entendidas grosso modo como substâncias "gordurosas") dissolvem-se bem em fluidos corporais. O caráter levemente ácido (ou básico) significa que estas substâncias normalmente encontram-se no que se chama de forma não ionizada, que é bem absorvida pelo nosso corpo. Dependendo das condições de acidez do meio, elas podem se converter à chamada forma ionizada, que é pouco absorvida.





O álcool estimula diretamente as membranas do aparelho digestivo, promovendo maior produção de ácido clorídrico no estômago (daí vem a famosa gastrite do pessoal que bebe demais) e também o aumento dos movimentos do intestino e do estômago, podendo provocar diarréia e vômitos (também ocorre com o pessoal que costuma tomar "aquele pilequinho"). Estes dois efeitos promovem uma passagem mais rápida e uma menor absorção do medicamento pelo estômago e pelo intestino (especialmente o duodeno, onde a maioria dos fármacos é normalmente absorvida) - leia mais aqui (em inglês). Assim, a ação do álcool não ocorreria diretamente sobre a substância antibiótica, mas sim na sua absorção. Com uma absorção menor, o medicamento estaria em menor concentração na corrente circulatória, diminuindo sua ação. Entretanto, esses mecanismos de interação, embora sejam coerentes, não são os principais responsáveis pela recomendação de não ingerir bebidas alcoólicas juntamente com antibióticos. Os grandes vilões nessa história são os próprios antibióticos.





Mas antes de falar sobre isso, é fundamental entender as vias de metabolização do etanol (álcool) que ocorrem no fígado. A metabolização nada mais é do que a transformação do etanol em outras substâncias que serão utilizadas pelo nosso organismo ou então descartadas através da urina ou do suor. Esse processo ocorre em duas fases, entretanto a fase relevante para as interações com antibióticos é somente a primeira, a qual consiste na conversão (em um processo conhecido como oxidação) do etanol a um composto chamado acetaldeído. Este processo é auxiliado por uma enzima chamada álcool desidrogenase. O acetaldeído, por sua vez é oxidado a acetato com a ajuda de outra enzima chamada chamada acetaldeído desidrogenase. Outras enzimas também participam destes processos e o etanol aumenta também o conteúdo de uma enzima da família conhecida como citocromo P-450 (uma grande família...), que é responsável pela metabolização no fígado de diversos medicamentos, entre eles ...vários antibióticos.





Falando em fígado, outro risco de beber e tomar medicamentos é que o etanol pode promover um dano maior que o normal ao fígado quando o antibiótico já possui por si só uma atividade tóxica para este órgão, como é o caso do antifúngico cetoconazol e seus derivados, do antibiótico contra tuberculose izoniazida e do antibiótico azitromicina e seus derivados. No entanto, os efeitos tóxicos são maiores para os usuários crônicos de álcool, aqueles que bebem todos os dias, uma cervejinha (só uma!) não causará maiores danos, embora possam surgir náuseas, vômitos e dores abdominais.





Voltando aos processos de metabolização do álcool, alguém já ouviu falar do efeito ANTABUSE? Pois é, existem algumas substâncias, que por terem em sua estrutura grupamentos contendo nitrogênio ou uma composição de nitrogênio com enxofre, inativam a enzima acetaldeído desidrogenase, a qual não irá converter o acetaldeído proveniente do etanol em acetato. O acúmulo de acetaldeído provoca reações típicas muito desagradáveis, caracterizadas por: ardência na face, dificuldades respiratórias, náuseas, vômitos, transpiração, queda de pressão, vertigem e visão borrada. O Antabuse, nome comercial do composto dissulfiram, utilizado para combater o alcoolismo, baseia sua ação justamente aí. Um antiprotozoário muito conhecido chamado metronidazol também causa esse efeito e tem sido usado para o combate ao alcoolismo. E vários antibióticos freqüentemente receitados, entre estes certas penincilinas como a ciclacilina e a ampicilina, assim como algumas cefalosporinas, entre elas a cefalexina, a cefadroxila e a cefradina, possuem um grupamento nitrogênio, o qual também é capaz de promover esse efeito "antabuse".





Além disso, estes antibióticos reagem diretamente com o acetaldeído, diminuindo a concentração do antibiótico livre no sangue. Isto significa que, em termos farmacêuticos, fica diminuída a disponibilidade do antibiótico para agir. Uma vez que existe menor concentração de antibiótico, seu efeito será reduzido - justamente o que os médicos afirmam, "que o álcool tira o efeito".





Agora vou fazer o papel de advogada do diabo: vou defender os médicos. Sim, está certo que nem todos os antibióticos interagem com as bebidas alcoólicas e que os médicos deveriam ter conhecimento disso. Mas já imaginaram a confusão que seria explicar para um paciente que não entende nada de química por que ele não pode tomar tal antibiótico com álcool e tal antibiótico ele pode? A tendência do paciente será sempre a de generalizar, e é claro, generalizar para o que é favorável a ele, ou seja, "ah, se tomando a minha "pinga" com X eu não sinto nada, vou tomar com Y também!" Por isso os médicos preferem generalizar também, não dando chance à imaginação da nossa população e criando esse tabu tão divulgado.





O certo é que uma cervejinha ou um vinho cai muito bem em diversas situações, mas o mais importante é beber com moderação. O risco de reações desagradáveis e problemas futuros ao ingerir bebidas alcoólicas durante o tratamento com antibióticos sempre existe, sentir essas reações ou não é uma questão de escolha. Eu, pessoalmente, escolheria não beber.

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